quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Reinaldo Azevedo, leitor de Safatle (final?)

Final? (este texto)
 
Na primeira parte dessa série nós vimos que, mesmo quando tenta ler um texto simples de Vladimir Safatle, um mero comentário "jornalístico" escrito em linguagem bastante acessível, Reinaldo Azevedo comete erro sobre erro de interpretação. E pior, o que se vê ali não são simples discordâncias, são distorções deliberadas do escrito, visando adaptar o texto a um determinado "Safatle Imaginário" que parece povoar os pesadelos do cronista.

A segunda parte foi um desvio nem tão inesperado, necessário para evidenciar uma característica do metodo argumentativo de Reinaldo: o ataque pessoal, em geral sem qualquer relação com o tema tratado. Como o Procurador Marcio Sotelo Felippe bem notou há algumas semanas, o blogueiro da Veja tem como norma utilizar aspectos pessoais para tentar desqualificar o interlocutor. Então, não foi nenhuma surpresa quando Reinaldo resolveu que o fato do pai de Vladimir Safatle ter terras em Goiás e ter tido algum problema com sem-terra da região de alguma forma torna inválidos os argumentos do filósofo sobre o autoritarismo do atual reitor da USP. Mais ou menos como a falta de cabelos de Reinaldo torna seus argumentos sobre o aborto menos relevantes.

A terceira e última parte dessa "leitura de uma leitura" segue logo abaixo. Nela eu analiso o primeiro texto de Reinaldo Azevedo sobre algum escrito de Safatle, no distante ano de 2009. O texto de Safatle é uma resenha das traduções de duas obras do filósofo esloveno Slavoj Žižek. O texto de Reinaldo é uma mistura complexa de interpretações erradas e conclusões sem fundamento. Como eu sou uma pessoa gentil, prefiro antes atribuir essa confusão à ignorância que à má-fé ou à desonestidade intelectual.

Um alerta ao leitor: Não é todo dia que eu tenho a oportunidade expor minha vasta ignorância sobre as obras de Lacan, Hegel, Marx e, por que não, Safatle e Žižek. Então procurei exercitar duas virtudes do texto filosófico desconhecidas de Reinaldo Azevedo, a humildade e a cautela. Não que o comentário a seguir seja um texto filosófico, não é. Mas o exercício da escrita pública "como um texto filosófico" me parece sempre dar melhores resultados que a mera emissão descontrolada de opiniões.

Um segundo aviso: o texto original já era bem longo, a análise que segue é, então, imensa. A maior causa foi quantidade enorme de erros a serem discutidos. É que a incapacidade de interpretação do blogueiro preferido de 9 entre 10 eleitores de Kátia Abreu é tão espantosa que eu não pude deixar de descer aos detalhes.


[Nos próximos parágrafos, as frases de Reinaldo Azevedo são transcritas em azul, as de Vladimir Safatle em vermelho]

Reinaldo Azevedo declara sua intenção já em seu estranho e longo título: "Cruzando a linha: O 'Estadão' publica texto que faz a defesa do terrorismo como princípio político. Nada será como antes". O título é claro, o Estadão cruzou a linha imaginária que separa o debate civilizado da barbárie ostensiva. Publicou um texto que "faz a defesa do terrorismo como princípio político". Logo o Estadão, esse baluarte da família paulistana, nas palavras do cronista esse "jornal de tradição e glórias mil, cujo apreço pelas liberdades públicas custou a seus comandantes o exílio e a mais odienta perseguição política". Muito bem. Sem entrar no mérito das "tradições e glórias mil", sabemos então que o texto a ser analisado, de Vladimir Safatle, irá defender o terrorismo como princípio politico. Será?

Os comunistas barbudos escrevem difícil...


O texto de Safatle se chama "Invenção do Terror que Emancipa"e é uma resenha de dois livros de Žižek publicados no Brasil em 2009,"Mao - Sobre a Prática e a Contradição" e "Robespierre - Virtude e Terror". Para que fique ainda mais clara a separação entre resenhador e resenhado, o subtítulo da resenha é "Slavoj Zizek usa textos de Mao Tsé-tung e Robespierre para discutir a potência política do inumano".

Não para Reinaldo que, por acidente ou premeditação, se recusa a admitir que uma resenha é, antes de tudo, uma descrição (talvez crítica) de uma obra qualquer. Safatle não está necessariamente endossando Žižek, mas sim descrevendo e explicando ( até onde é possível em um jornal de grande circulação) as ideias daquele autor.

Mas por todo o texto, a começar do título, Reinaldo ataca Safatle como se as ideias apresentadas fossem do filósofo da USP. Omitindo o subtítulo, ele diz que "'Terror que Emancipa' é, por si só, uma formulação imoral". Ora, caberia aqui uma longa discussão sobre o significado das palavras, sobre a capacidade da linguagem expressar a moral "em si" (ou Reinaldo agora vai concordar que, por exemplo, determinado tipo de formulação é inerentemente imoral e não tem lugar em ambientes respeitáveis? Rafinha "estuprador merece um abraço" Bastos, alguém?) e, especialmente, sobre qual moral estamos falando. Ou há apenas uma?

Nos próximos dois parágrafos Reinaldo vai só enrolar. Ataca Safatle por escrever uma introdução: "E NOTEM QUE ELE AINDA NÃO DISSE NADA DOS LIVROS QUE SE PROPÔS A RESENHAR. Que se danem os livros! Ele tem uma tese, e os volumes servem apenas de pretexto." Isso depois de dois míseros parágrafos! E a única tese vista até aqui é que há excesso de literatura conservadora nas prateleiras de Ciências Humanas das livrarias (fato que Reinaldo nega veementemente sem apresentar qualquer prova em contrário). Ataca Safatle por usar aspas: "Assim, quando ele, ironicamente, se refere ao “sanguinário” Lênin, quer nos dizer que o facínora não era, então, sanguinário. Quando põe aspas em “terroristas”, está dizendo que terroristas não são" e o contexto que se dane, né, Rei? Porque quando Safatle coloca aspas em "terroristas", está claramente se referindo de forma irônica a obras que tratam grupos de resistência ou qualquer grupo islâmico como terroristas ("análises sobre a luta milenar entre os "terroristas" e os defensores da modernidade esclarecida"). As aspas só não cabem se você imagina que os participantes da Resistência Francesa contra a ocupação nazista, da luta armada brasileira contra a ditadura e do movimento de independência da Argélia eram todos terroristas, que deveriam ter ficado sentados em casa, vendo a novela e esperando pacientemente que a História lhes desse razão... Quando usa aspas em "sanguinário" ao se referir a Lênin, Safatle está atacando a redução e identificação conservadora da figura de Lênin apenas a uma espécie de "mandante" de crimes reais ou imaginários resultantes da Revolução Russa, uma simplificação tola, mas até por isso bastante popular em certos círculos.
...mas os comunistas carecas com cavanhaque são os mais perigosos.

Reinaldo tem claramente uns problemas de atenção. Logo após ter reclamado que Safatle "AINDA NÃO DISSE NADA DOS LIVROS" nos dois parágrafos introdutórios, ele agora acusa Safatle de "encher lingüiça", de falar difícil e de omitir que Žižek "é um “filósofo” empenhado na reabilitação do comunismo — excluindo-se, claro, todos os seus defeitos". Isso porque Safatle resolveu apresentar o autor e as obras que vai resenhar, nomear os principais teóricos contemporâneos próximos de Žižek, explicar seu campo de interesse e citar suas obras mais importantes. Exatamente como Reinaldo pedia no parágrafo anterior... Sobre a omissão, não me faça rir, Azevedo. Sim, você queria a palavra "COMUNISTA" escrita ali, bem grande, para poder parar por aí, declarar vitória e ir para Dois Corrégos descansar. Entretanto, dizer que Žižek quer "reabilitar o comunismo" é uma declaração de ignorância da obra do filósofo esloveno. Sua leitura das revoluções, de 1789 até 1968, nunca resvala para linha ingênua do historicismo conservador. Žižek sabe perfeitamente que a História não dá meia volta nem segunda chance. Além disso, só eu percebi que os livros resenhados são sobre Mao e Robespierre, que Safatle chama Žižek de "figura maior da renovação do pensamento de esquerda" e diz também que a obra do esloveno gira em torno das articulações entre o marxismo e a psicanálise? Mao, esquerda, marxismo. Quer dizer, Reinaldo, precisa desenhar com lápis de cera? E aliás, por falar em afirmações redundantes, qual seria exatamente o problema do comunismo sem "todos os seus defeitos"?

A próxima intervenção de Azevedo já nos lança em um poço retórico cuja função é preparar a falsidade central do texto. Diz Reinaldo: "A vigarice intelectual não tem limites. Recorre-se a categorias lacanianas, como ficará claro mais adiante, para se justificar a ação terrorista." Sobre o que fala Reinaldo? O que ele finge não saber? Que Žižek se dedica a estabelecer a ponte entre a psicanálise lacaniana e o marxismo? Mas Safatle não acabou de dizer que "Zizek conseguiu renovar as articulações entre psicanálise e marxismo através de recursos sistemáticos à Jacques Lacan e às figuras maiores do idealismo alemão (Hegel, Schelling, além de uma versão peculiar do sujeito transcendental kantiano)". Tá ali, escrito, na ordem, marxismo, psicanálise, Lacan. Naquele parágrafo que Reinaldo disse que era encheção de linguiça. Pode ser que ele não tenha lido. Seria a única explicação para esse espanto todo quando Safatle diz que Žižek procura "tirar as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político.", que tal operação é feita através da retomada da noção de política revolucionária em textos de "Lenin, Trotsky, Lukács e, agora, Mao e Robespierre lidos à luz da noção de "ato analítico", de Lacan." e que "...Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito.". A vigarice intelectual aqui, se há, é toda de Reinaldo. Ele possivelmente conta com a ignorância do leitor sobre a obra de Žižek para causar uma surpresa artificial, um suposto uso de "categorias lacanianas" para "justificar o terrorismo". Que pilantras, esses filósofos! Saem por aí usando as categorias lacanianas sem nem pedir permissão para o velho Jacques!

O problema no texto de Reinaldo, deste ponto em diante, é que ele perde o rumo. Ele tem uma tese: Žižek e, por extensão, Safatle, são dois comunistas que estão tentando justificar o terrorismo como forma legítima de ação política. Como nem o texto de Safatle nem a obra de Žižek suportam tal conclusão, ela só pode se sustentar em bases muito frágeis. O que Reinaldo vai fazer? O sensato seria ter desligado o computador sem salvar o texto, mas então nós não estaríamos aqui, não é? O que Reinaldo faz, na verdade, é demonstrar de forma inequívoca que sua tese está errada. O mais divertido (para um certo valor, digamos, "filosófico" de diversão) é que ele faz isso sem aparentemente se dar conta do que está fazendo.

Safatle escreve: "Podemos dizer isso porque se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo.", ao que Reinaldo responde: "...Safatle se prepara para elevar o terrorismo à categoria das ações respeitáveis. E quem o contestar estará, fatalmente, limitado pelo “quadros normativos do humanismo”".

Primeiro, vamos esclarecer o que está dito. O "isso" em "Podemos dizer isso" se refere à frase que fecha o parágrafo imediatamente anterior: "Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito". O "porque se trata" então vai detalhar melhor a articulação que Žižek constrói. Essa "articulação entre a política e a teoria do sujeito", nos informa Safatle, consiste em "interrogar o sentido da ação revolucionária". Onde, por toda a História da humanidade? Não, apenas "no interior do projeto moderno". Projeto moderno de que? Ora, "de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo". Safatle não arroga para si a derrocada ou a defesa do quadro normativo do humanismo. Pois nem trata de afirma-lo ou nega-lo, mas de limitar seu alcance e reconhecer sua inadequação. Esse projeto moderno, que se inicia talvez na Revolução Francesa, implica o reconhecimento de uma nova subjetividade, a qual (a tal subjetividade) não se adequa mais ao quadro interpretativo traçado pelo humanismo.

A tolice da frase de Reinaldo deve estar evidente. Ele sequer entendeu o que estava escrito e confunde o próprio sentido dos termos, trocando o significado filosófico e técnico algo preciso das palavras de Safatle por uma interpretação calcada no significado cotidiano de tais palavras. Só assim é possível atribuir a Safatle a separação entre uma análise que se baseie no tal "quadro normativo do humanismo" e outra que despreze tal quadro. A separação se dá na necessidade de dar conta de um novo tipo de "subjetividade". Não vou sequer discutir aqui o sentido desse termo específico na obra de Žižek (que a deriva diretamente de Lacan) pois nos desviaria muito do caminho. Mas Safatle delimita melhor o conceito logo a seguir, dando a Azevedo a oportunidade de demonstrar definitivamente que não sabe mais o que está lendo.

Blogueiro da Veja demonstra que a gravidade "é só uma teoria".

Safatle escreve: "Ou seja, Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do “humano” e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer."
Reinaldo, se sentindo seguro como o Coiote correndo no vazio, naqueles dois segundos antes de despencar no abismo, retruca: "Ah, bom! Vamos parar com essa bobagem de “substancializar” o humano. Devemos é pensar no avanço moral da substancialização da Besta! E chega também dessa história da lógica utilitarista da “maximização do prazer”. Coisa mais ocidental e sem graça! Começo a entender agora a lógica interna do “martírio” dos atentados terroristas. Ali, sim, há pessoas que foram muito além da “substancialização do humano”, né?, apontado as virtudes libertadoras do sofrimento."

É importante observar a posição a partir da qual Safatle está falando. Ele atribui a Žižek a intenção de mostrar que, a partir da Revolução Francesa, nasceu uma nova forma de subjetividade. E que essa subjetividade não podia mais ser definida pela "substancialização de atributos do "humano"" e seus interesses (os interesses dessa nova forma de subjetividade) não podiam ser compreendidos através da lógica utilitarista.

Primeiro, então, cabe notar que essa nova subjetividade só está definida aqui no negativo. Há, resta evidente, uma subjetividade anterior à Revolução que, essa sim, se definia pela "substancialização de atributos do 'humano'" e cujos interesses podiam ser compreendidos dentro de um quadro moral utilitarista.

Segundo, Reinaldo confunde os "atributos do humano" com todo o humano. Observe que ele até esquece o que ele mesmo tinha observado logo acima, quando Safatle usa aspas o sentido do termo muda.

Terceiro, Reinaldo também não entendeu o sentido de "substancialização" ali. O que Safatle quer dizer (na verdade, o que Safatle quer dizer que Žižek diz), explicando de uma forma terrivelmente simplificada, é que aquela subjetividade "pré-revolucionária" definia o mundo e se definia atribuindo à "substância" (ao "objeto" para o qual ela era "sujeito", ao mundo físico exterior) atributos inerentes ao ser humano. Projetando, por assim dizer, seu em-si no mundo.


[Mas não se pode também zombar demais da ignorância de Azevedo aqui. A palavra "substância" carrega um peso que remonta à Grécia Clássica. "Ousia", a palavra grega, nos foi traduzida para o latim como "substância" e "essência" (e também, algumas vezes, "acidente") e povoa toda a história da filosofia, de Sócrates a Derrida e além.]

Quarto, Reinaldo também não entendeu a referência à lógica utilitarista. O que a Revolução trás de novo é a um quadro de referência universal. A lógica utilitarista permitia interpretar os atos daquela subjetividade a partir de um cálculo razoavelmente preciso de "maximização do prazer e afastamento do desprazer". A nova subjetividade só permite a interpretação a partir de uma lógica que opere em um quadro de verdade absoluta.

Quinto, Reinaldo não sabe de quem se está falando (e isso fica explícito mais abaixo). A referência óbvia aqui é Hegel. O que Safatle resumiu nesse pequeno parágrafo foi a passagem (apressada e prematura, sugere Hegel) da Consciência do "Mundo da Utilidade" para a "Liberdade Absoluta" culminando no Terror e na oscilação da Revolução Francesa entre a anarquia e a ditadura. Isso está descrito no capítulo chamado "Liberdade Absoluta e Terror" em "A Fenomenologia do Espírito", parágrafos 582 a 595. A referência a Hegel em Žižek é constante e fundamental. Sem ela, como se vê, é impossível entender sequer uma mera resenha sobre dois livros menores do filósofo esloveno, muito menos o que ele quer dizer... [Nota sobre nosso pobre mercado editorial: A edição brasileira da Fenomenologia está esgotada, por isso o link acima para a versão aberta em inglês. E para ler a Fenomenologia você precisa também de outro livro esgotado, "A Gênese e a Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel" de Hyppolite, o mais completo e influente comentário já escrito sobre aquela obra do filósofo alemão. Os dois livros podem ser encontrados nas bibliotecas universitárias e, procurando um pouco, você acha os dois pelos desvãos da Internet].

E sexto, já até me adiantando um pouco, Reinaldo confunde (já não sei se por acidente ou intenção) Terror com terrorismo, em uma operação verbal algo tosca.

Devia bastar. Mas Reinaldo, Azevedo que é, sempre pode ler pior


Safatle: "Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade “inumana” por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira “terrorista” os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma."
Reinaldo: "Como vocês sabem, este escrevinhador já deixou cravado neste blog que a Revolução Francesa transformou a morte em teoria política e atribuiu virtudes filosóficas à eliminação do adversário. Jamais imaginei que leria na “imprensa burguesa” a apologia desse procedimento."

Como vemos, Reinaldo já esqueceu sua hipótese inicial sobre a função das aspas no texto de Safatle. A "apologia da morte como teoria política" e a atribuição de "virtudes filosóficas à eliminação do adversário" só existem no texto de Safatle se o parágrafo em vermelho for lido a partir do mais simplório dos sensos comuns. E só para completar, lido com atenção o texto de Safatle confirma o que dissemos acima sobre o sentido de "substância" nesse contexto.

Vale observar também a recusa da herança da Revolução Francesa, ainda mais explícita no parágrafo seguinte, um traço conservador bastante disseminado. Prefere-se, nos círculos mais polidos do conservadorismo, a Revolução Americana, que por falta de matéria-prima não decapitou reis, nobres ou meros opositores (poucos anglófilos gostam de lembrar que ainda no século 17 a Inglaterra decapitou seu rei, naquela preliminar da revolução burguesa liderada por Cromwell).

Safatle:"Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que “o passado terrorista deve ser aceito como nosso”,"
Reinaldo:"O escambau! O passado terrorista de Robespierre é o passado do marxismo — porque lá está sua semente e de quantos defendam o terrorismo."


Duas observações. Uma, a Revolução Francesa está na origem de tantos desdobramentos históricos que essa frase de Reinaldo só pode ser compreendida de forma caridosa, mais ou menos da forma como nós compreendemos as hipóteses de uma criança de 3 anos sobre o funcionamento do Universo. O problema é que enquanto a criança está trilhando um caminho de desenvolvimento que eventualmente permitirá a construção de hipóteses mais produtivas, o blogueiro está já imerso em uma estrutura fantasmagórica final, uma gramática que não admite mais evolução. Duas, completou-se formalmente a linha de raciocínio falaciosa na qual a conclusão já estava contida nas premissas [essa forma de argumentação chama-se, em inglês, "Begging the question"; em português usa-se a expressão latina "petitio principii"]. Reinaldo parece ter demonstrado a si mesmo que Safatle, Žižek e o texto defendem o terrorismo como princípio de ação política, então já pode escrever como se isso tudo fosse verdadeiro, como veremos logo a seguir.


Safatle: "não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino."
Reinaldo: "O recurso a Hegel é vigarice intelectual. A única maneira de “construir estruturas institucionais universalizantes” (como Safatle consegue emprestar aparência de profundidade à defesa do terror, não!?) que abarquem o terrorismo é aceitá-lo como coisa legítima e, quem sabe?, exaltá-lo como prática criativa da política."


Fecha-se o ciclo. Reinaldo, que nem viu Hegel ali desde quase o início do texto, assusta-se que a menção explícita ao filósofo alemão. "Vigarice intelectual!!", clama o blogueiro. "Alguém anotou a placa do caminhão que atropelou o pobre jornalista?", perguntaria um transeunte mais atento.


Reinaldo não entendeu nada, mas podemos pegar o lápis de cera e desenhar outra vez. Safatle está dizendo (de novo, dizendo que Žižek diz) que os tais "sujeitos não-substanciais" tendem naturalmente a se "manifestar como pura potência disruptiva e negativa" (isso, não por acaso, é quase Hegel puro, sem açúcar nem adoçante). Essa é o origem do Terror da Revolução de 1789. A pergunta então é se é possível evitar isso (não por acaso de novo, exatamente o contrário do que entendeu Reinaldo!!). Como construir estruturas (sociais, educacionais, políticas) institucionais (ou seja, que se insiram na sociedade na forma de procedimento auto-reproduzíveis) universalizantes (e que estejam disponíveis a todo o corpo social, não apenas a partes dele) sem se permitir cair na armadilha da "verdade absoluta" que leva quase que necessariamente ao Terror? Essa pergunta faz parte do legado da Revolução Francesa e é uma das preocupações constantes de Žižek.


Safatle: "A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente."
Reinaldo: "Entenderam? O motor de nossa história recente foi o terrorismo."


Se eu não conhecesse Safatle eu diria que ele escreveu isso como pegadinha para o Reinaldo. Mas sei que ele não escreve para o Reinaldo ler (seria inútil, né?). A referência a Badiou, umas das influências maiores em toda a obra de Žižek, complica o problema bem além daquilo que o pobre blogueiro tem condições de vislumbrar. A interpretação tão brutal quanto estúpida, vinda da certeza de Reinaldo de já ter provado que o texto é só uma apologia do terrorismo, passa por cima de boa parte de toda a filosofia francesa do pós-guerra. Sem tentar explicar muito algo que já vai bem além do meu parco conhecimento, a chave de entendimento da História em Badiou é o Evento, aquele momento imprevisível que, uma vez que acontece, cria suas próprias causas retrospectivamente e cujas consequências são abertas. O que se exige na presença de um Evento, de acordo com Žižek, é fidelidade ao Evento - leva-lo a suas consequências lógicas. O que gera o Terror, nessa perspectiva, é a nossa incapacidade de extrair do Evento seus efeitos necessários, nossa tendência a tentar voltar o mais rápido possível ao que seria uma "vida normal".


Safatle: "História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos."
Reinaldo: "Vejam que haveria uma certa gratuidade quase poética no terrorismo. Ele nem mesmo quer redistribuir rendas ou direitos. Quer apenas se exercer."


Outro divertido traço conservador é identificar revolução com alguma Revolução da qual eles não gostam. Qualquer marxista de botequim sabe que a maior força revolucionária em atividade no mundo desde o século XVIII é o próprio capitalismo. Tudo que é sólido, dizia o Manifesto, desmancha no ar, e não são os terroristas a causa dessa destruição contínua. Mas Safatle de fato fala aqui das Revoluções e lutas pela liberdade. Mas não, claro, do terrorismo.


Safatle: "Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia."
Reinaldo: "É o trecho que, uma vez compreendido, pede que tomemos Dramin. Mortos? Que importância tem isso? Ver apenas os efeitos negativos do terrorismo? Que visão mais limitada e estreita da realidade! Ora, não vamos “entificar” (suponho que a estrovenga signifique “transformar num ente”) essa bobagem de respeitar princípios formais gerais. Eles já não dão mais conta da realidade. Notem o truque: se a gente considerar que o terrorismo não cabe no que se entende por democracia, o caminho é, então, mudar o que se entende por democracia, preservando a prática terrorista. Nesse caso, a “idéia de democracia” só passará a ter virtudes se incorporar a prática terrorista."


A frase "entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais" quer dizer, em termos mais leigos, naturalizar a democracia liberal como única forma política válida. O sonho conservador do Fim da História. Como diz Žižek em outro lugar, se a História realmente terminou assim então não há mais motivo para fazer filosofia, podemos ir todos pescar. Se, entretanto, a democracia liberal globalizada ainda guarda em si as sementes de sua própria destruição, se a História ainda não terminou, talvez valha à pena continuar pensando.


Eu paro aqui. Reinaldo ainda segue seu texto demonstrando não ter entendido nada do que está escrito. Nos parágrafos finais ele não entenderá o que significa "estado de exceção", se confundirá com a caracterização da política moderna nas democracias ocidentais como uma "asustadora reunião de homens assustados" (frase de Žižek), e não conseguirá sequer saber do que se fala na releitura de Žižek da Revolução Cultural, entre outros. O blogueiro ainda tem a pachorra de ler errado um texto mais antigo de Safatle, este sobre o 11 de setembro (uma leitura até divertida, por retomar a visão conservadora de que os atentados só podem ser atribuídos a uma espécie de maldade metafísica intrínseca aos terroristas, não podendo se sujeitar a qualquer outro tipo de análise causal).


Não sei se meu texto acima faz justiça a Safatle ou a Žižek, mas prometo voltar a Žižek em breve, para falar sobre "Em Defesa das Causas Perdidas", um livro mais recente e bem mais intrigante do filósofo esloveno.

9 comentários:

  1. Paulo, querido, profunda admiração por essa sua determinação desprendida de qualquer asco. Trabalho do quilate da mais profissional faxineira em quarto de motel pós-orgia.

    E ainda conseguiu dar pra essa nojeira de dissecção, necropsia de corpo putrefato, um título fofinho inspirado em Borges.

    Bem que a gente falava pra você criar um blog...

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  2. Deborah,

    Adorei "faxineira em quarto de motel pós-orgia". Às vezes dá mesmo aquela sensação de "o que diabo eu estou fazendo aqui". Mas a verdade é que eu me divirto. Bom que eu divirto outros também...

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  3. Quer dizer que Reinaldete visse George Washington cruzando o Delaware com um monte de mulambentos "sem perucas" ele correria para os musculosos braços dos gendarmes da Rainha (acho que naquele tempo era um rei e acho que na Inglaterra não tinha gendarme, mas tudo bem) a uivar:
    - Terroristas, terroristas, acudam...
    Bom tomara que o Safatle lhe dê muita porrada (e não só metaforicamente falando).
    Ou então que faça como Chico fez com o tão esgotoniano quanto Mario Sabino: leia-o e conclua que Reinaldete não poderia ser outra coisa na vida a não ser blogueiro da Óia (tá aqui - http://www.rollingstone.com.br/edicao/edicao-61/entrevista-rs-chico-buarque !
    PS1: Tem um saquinho de vômito aí?
    PS2: Maravilha de blog - descobri pelo Descurvo e vou voltar (prometo tomar meu remedinho da próxima vez)
    Abração e feliz 2012 :-)

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  4. Desisti de publicar qualquer coisa no blog do Uncle-King. Sempre sou censurado. Já havia percebido que ele só publica o que lhe interessa, mas tentei. Percebi, também, que ele frequentemente usa a estratégia de fazer ataques pessoais para assim desmoralizar o autor(qualquer que seja, desde que ele não goste), achando que com isso provará o que quer. Um leitor menos atento deixará imediatamente de ter como válidos os argumentos do autor em face de sua suposta ausência de virtudes. E sim, ele acusa sem provas, mas deve ser porque se acha o dono da verdade, última reserva de moralidade do país e do mundo. Em resumo, ele não vale a pena, mas deve ser desmascarado. Encaro isso como um dever. Gostei de ver que não sou apenas eu a pensar assim.

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  5. Paulo, conheci hoje seu blog, gostei muito do texto, parabéns!
    Gostaria que você desse sua opinião sobre este artigo que fala sobre a esquerda em geral e os progressistas brasileiros mais especificamente:

    http://migre.me/7sXaO

    Abraço!

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  6. Toda essa discussão só reafirma a inutilidade dos filósofos.

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  7. Esses filósofos escrevem tão rebuscado que ninguém entende, e depois ficam brigando para tentar decifrar ou explicar os possíveis sentidos do texto. Isso é para quem não tem o que fazer e pensa que é inteligente.

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  8. Anônimo, acho que vale sempre lembrar uma frase de um grande professor de Filosofia da FFLCH, O Pedro Pimenta: "Meu filho, não é o Kant que escreve mal, é você que não sabe ler..."

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  9. Prefiro a frase de um grande professor ganhador do Nobel de Física, Albert Einstein: “Todas as teorias físicas deveriam se prestar a uma descrição tão simples que até uma criança pudesse entender”.

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