sábado, 16 de junho de 2012

Combray a pururuca

Tem esse problema de atrasar as prestações do karma, quando vem a cobrança, com todos os atrasados acumulados mais juros e multa, não tem site com Fale Conosco, 0800 com musiquinha de elevador ou departamento de fidelização para renegociar a dívida. Ao contrário das telefônicas ou das empresas de TV a cabo, o karma não precisa nem fingir que se importa. O karma, crianças, não vai estar enviando um novo boleto em 5 dias úteis.

O primeiro aviso veio logo no inicio do ano, uma lesão no menisco que acabou em uma operação razoavelmente simples e, guardadas as proporções, indolor. Isso em abril, com direito a dez dias de antibiótico. Logo em seguida um cisto perto da orelha se revoltou com a situação e ficou do tamanho de uma bola de ping-pong. Dermatologista, punção e mais 7 dias de antibiótico (dessa vez com o dobro do queijo, digo, da dose). Mas isso era só o aquecimento.


No último domingo de maio começou a febre, 38,5 a 39,5, insensível a novalginas e tilenóis. Isso duraria uns 10 dias. Na terça começou a dor na virilha. Se você já teve pedras no rim, era aquela intensidade. Se você nunca teve pedras no rim, imagine uma pequena bala (calibre 22, digamos, ou mesmo uma bolinha de chumbo) penetrando na sua virilha e afundando uns 10 centímetros. Sua carne se refazendo imediatamente, aquela brincadeira boba de Prometeu acorrentado, e outra bala entrando em seguida no mesmo lugar. A dor é mais ou menos essa.

Quarta-feira então foram 12 horas no hospital até um diagnóstico de infecção urinária e uma receita de antibiótico, antiinflamatório e novalgina. Como a novalgina tinha sobre a dor o mesmo efeito de uma balinha de açucar, antes da meia-noite eu estava de novo no hospital para conseguir uma receita de analgésico de verdade, um que pelo menos me deixava dormir umas horas. Quinta-feira, a mesma febre e a mesma dor. Sexta consegui uma consulta com meu urologista, que me internou imediatamente. A febre finalmente começaria a ceder na quarta-feira seguinte, sob uma barragem quase contínua de antibióticos variados. Eu voltei para casa na noite de sexta.

Até aqui, só um evento médico prosaico. Eu não estive perto o suficiente da morte para ver luz branca e filme da minha vida em 3D. Também em nenhum momento, mesmo quando a dor era realmente intensa, passou pela minha cabeça me converter a alguma religião do Livro, aceitar algum salvador morto ou confessar alguma coisa. Digamos que eu estive apenas perto de estar perto da morte, uma distância segura mas desconfortável. Mais ou menos como dirigir à noite com chuva pela Niemeyer, no Rio, mas no sentido Leblon - São Conrado. Você não está exatamente à beira do abismo mas sabe que, se alguém cometer algum erro bobo, você chega lá muito rápido.

Uma febre de trinta e nove graus não é o suficiente para delirar, apenas para te deixar prostrado e incapaz de qualquer atividade mais cansativa que levantar para ir ao banheiro ou assistir algum seriado desses feitos para não pensar. Para mim, a febre aparentemente também serviu de catalisador para uma reminiscência muito particular.

Quando começou, no domingo, parecia apenas um fio de lembrança ou uma vontade de comer, apenas um gosto persistente de carne de um porco não muito específico, podia ser copa ou lombo ou costelinha, algo assim. Aos poucos a imagem foi se definindo em um pedaço de leitão a pururuca assado em forno a lenha.

Eu escrevi "imagem", mas não era isso. A mera sugestão inicial do gosto de algum porco foi se desenvolvendo e se definindo em uma experiência mental extremamente detalhada, envolvendo todos os sentidos, da consistência específica ao cheiro e temperatura da carne, do som da faca cortando a pele dura ao gosto intenso da mistura de pele crocante, gordura quase líquida e carne macia do leitão.

Se você é muçulmano, judeu ortodoxo ou fanático por comida ruim e sem gosto (a.k.a. "comida saudável") e nunca provou carne de porco, dificilmente você vai conseguir entender a complexidade do leitão à pururuca ou a dificuldade dessa recriação quase perfeita. Não é um prato fácil de fazer direito, é muito fácil deixar a pele do porco borrachuda ao invés de crocante. Também não é uma carne para amadores - depois de alguns pedaços você se sente quase que literalmente embriagado, seu fígado está em Defcon 3 e uma sonolência muito doce começa a tomar conta de todo o seu corpo.

Deitado na cama do hospital, essa sensação me acompanhou enquanto a febre não cedeu. Eu podia sentir a resistência da pele dura nos dentes, sentir nitidamente a diferença de gosto da gordura, da carne, da pele, além da temperatura e do barulho peculiar da mastigação. Eu podia me alimentar daquilo continuamente. No auge da febre a sucessão de sensações abarcava desde cortar a carne no prato até engolir o pedaço mastigado com todas as etapas intermediárias, envolvendo todos os sentidos.

Eu sei a origem disso tudo. Eu nasci em São Paulo, mas toda a minha família é do interior, especificamente de Marília. Minha avó paterna teve mais de dez filhos, oito dos quais cresceram e tiveram seus próprios filhos e netos. Meu pai tinha sobrinhos da sua idade, vários netos da minha avó tinham filhos quase da minha idade.

Minhas lembranças de férias na infância são recortes de multidões de tias, tios e primos em uma grande casa de madeira com um quintal que parecia infinito. Não chegava a tanto, mas era grande o suficiente para conter três grandes árvores, uma mangueira, um abacateiro e no fundo um jatobá de uns 30 metros,  capaz de cobrir de folhas todos os quintais do quarteirão. Dois limoeiros, um perto da cozinha, outro no fundo, perto do muro. Uma horta com verduras e ervas diferentes. Erva-doce para chá e bolinho de chuva. Uma parreira de chuchu. Em alguns anos havia um galinheiro.

Os jantares e almoços de Natal eram banquetes para dezenas de pessoas. O prato tradicional, leitão a pururuca assado em forno de barro. À lenha. Naquela época a construção de fornos de barro já era uma arte quase perdida, os fornos da casa da minha avó duravam no máximo um ano antes de rachar e cair. Aí era preciso fazer outro. Não sei bem quando os adultos cansaram dessa rotina, mas nos últimos verões da minha memória, quando eu já estava casado e já tinha um filho (minha avó morreu em 2006 com 106 anos e alguns tataranetos - acho que a última grande festa da família foi o aniversário de 100 anos em fevereiro de 2000), os porcos foram assados ou no forno à gás da cozinha ou em alguma padaria. Por fim, os níveis médios de colesterol, ácido urico e obesidade da geração mais velha da família acabaram decretando a quase extinção da farra do porco.

Ainda convalescendo em casa, ainda um tanto incapaz de uma vida normal, contemplo a hipótese de sentar e escrever as três mil páginas seguintes. Imagino que cada um tem sua Combray particular. A minha é a suína, acompanhada de tutu de feijão, arroz branco e um molho a base de limão. Aparentemente, em um rasgo antropofágico no melhor sentido oswaldiano, o leitão a pururuca é a minha madeleine.




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